Covid-19 e Discriminação

ÁLCOOL EM GEL, DISTANCIAMENTO SOCIAL E BOM SENSO

No Novo México, Estados Unidos, um estudante encontra a porta de seu quarto coberta em plástico e com uma sinalização: “Cuidado, mantenha-se afastado, em quarentena”. Shuyuan Ye não tinha quaisquer sinais de Covid-19, sequer estava doente, mas sua nacionalidade – era um estudante internacional vindo da China – foi motivação suficiente para seus colegas de alojamento. Após isso, Ye decidiu transferir-se de dormitório.

Na Austrália, um homem de sessenta anos desmaiou nas ruas de Chinatown, em Sydney, após o que se suspeita ter sido um episódio de parada cardíaca. Com medo de que a causa fosse o novo coronavírus, nenhum dos presentes realizou uma reanimação cardiorrespiratória e ele não sobreviveu.

Em Coimbra, duas jovens chinesas, com máscaras de proteção no rosto, tiveram o serviço de transporte negado por um motorista de ‘Uber’, segundo relataram para a reportagem. Carol, estudante chinesa da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FPCEUC), também recorda quando, em compras de supermercado, percebeu olhares aos quais chamou de “especiais” e sussurros evidenciando sua nacionalidade. “Isso não deveria acontecer”, afirma a estudante.

Apesar de não ser uma novidade na vida de pessoas de etnias consideradas “minorias”, a xenofobia está ainda mais evidente desde dezembro, quando os casos do coronavírus na China chegaram aos media ocidentais. Ainda no início da epidemia, um vídeo tomou a atenção dos internautas. Nele, uma jovem asiática comia morcego com hashi e foi motivação para comentários que culpavam os hábitos alimentares “nojentos” chineses pela erupção do novo vírus, que teria começado em um mercado em Wuhan. Afinal, o vídeo, que julgavam ter sido gravado na cidade do primeiro caso, era de 2016 e foi gravado em Palau, um pequeno país no Oceano Pacífico, onde morcegos são considerados iguarias culinárias.

NÃO É APENAS A COVID-19

Os acontecimentos trazidos à tona pelo novo coronavírus são algo regular em momentos nos quais novos vírus se instalam. Durante o surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave), em 2002, a comunidade chinesa pelo mundo foi afetada, mesmo quem não estivesse doente. Entre os efeitos, chineses comerciantes imigrantes relataram queda no consumo e turistas foram impedidos de frequentar espaços, como hospedarias, ainda que se apresentassem em saúde. No início dos anos de 1980, haitianos sofriam agressões físicas e verbais, acusados de ‘espalharem’ HIV para a população. Em 2015, ainda que o surto de ébola atingisse apenas uma pequena parcela dos países africanos, outros países pareciam inclinados a considerar como caso suspeito qualquer pessoa que chegasse da África. Entrevistada pelo site de notícias Vox, a professora de história e estudos americanos da Universidade do Sul da Califórnia, Natalia Molina, explicou que atitudes de xenofobia como as colocadas em evidência são demonstrações de preconceitos já internalizados à pessoa. “Quando nós já pensamos que certos povos são ‘perigosos’ ou ‘desprezíveis’ ou ‘intrusos’, é muito mais provável que os vejamos como portadores de doenças”.

Estas atitudes, no entanto, trazem consequências duradouras à vida da vítima. A psicóloga e fundadora do Setting Terapêutico, situado em Coimbra, Rachel César conta que ela própria, como brasileira, já foi vítima de xenofobia ao chegar em Portugal e confere dificuldade em identificar as atitudes preconceituosas. “Às vezes não te xingam diretamente, não fazem um comentário ofensivo diretamente, mas você se sente ofendido, se sente mal com aquele comentário e não tem como acusar”, afirma a psicóloga. Ainda que muitas vezes seja difícil de reconhecer a xenofobia, Rachel concorda que, por menores que pareçam os comentários, eles levam as vítimas a situações de risco, uma vez que demoram de entrar na rede de apoio do país por medo da discriminação. “Um imigrante pode demorar muito mais tempo para procurar ajuda médica, pode chegar a ocultar os sintomas de alguma doença e optar por automedicação”, continua. Para a psicóloga, os comerciantes chineses de Coimbra, por exemplo, sofrem também oscilações ainda mais severas no campo financeiro em relação ao que já é esperado aos mercadores durante a quarentena. “Estas pessoas são colocadas em uma vulnerabilidade muito grande”, resume.

UM “VÍRUS MENTAL”

Ainda assim, alguns dos casos mais polêmicos de xenofobia vêm de autoridades de quem se espera respeito e responsabilidade. O governo de Trump, por exemplo, considerou impor restrições na fronteira entre os Estados Unidos e o México em resposta ao coronavírus, ainda que o país latino tenha apresentado seu primeiro caso mais de um mês depois do país estadunidense. As reações xenófobas de Donald Trump não são novidade e, durante sua campanha para presidência em 2015, chegou a afirmar em declaração para a Business Insider que “doenças infecciosas terríveis estão atravessando a fronteira [com o México]”. Como de se esperar, ainda, Trump continua a referir ao coronavírus como “vírus chinês”.

No Brasil, Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, usou suas redes sociais para afirmações controversas. Culpando o Partido Comunista Chinês pela pandemia, Bolsonaro comparou-a ao desastre de 1986 na central nuclear de Chernobyl, na antiga União Soviética. “Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas”, escreveu o deputado federal. Em resposta, a embaixada da China no Brasil chamou as afirmações do filho do presidente de “extremamente irresponsáveis” e “familiares” e finalizou dizendo que Bolsonaro teria contraído um “vírus mental”.

Na Europa, o líder do partido de extrema direita Liga Norte, na Itália, Matteo Salvini, vincula a chegada ao país de migrantes africanos ao surto do vírus – no entanto, nenhuma morte por coronavírus havia sido registrado na África, à época de suas afirmações. Na França, Marine Le Pen, líder do partido Rassemblement National pediu a adoção de controle de fronteiras e acusou a União Europeia de se silenciar sobre a situação do coronavírus. Na Espanha, o líder do partido de extrema direita Vox, Santiago Abascal, também atribuiu o vírus às fronteiras abertas.

COMO SE PREVENIR

Os profissionais de saúde recordam, no entanto, que a maneira correta a reagir diante do Covid-19 é se manter em casa. A psicóloga Rachel César ainda recomenda que durante o isolamento social, seja mantida uma rotina, “mais próxima à que temos normalmente”. Entre outras recomendações, a psicóloga fala do benefício que a quarentena trouxe de estar mais tempo com a família, presencialmente ou por ligações de vídeo, que considera ajudar no “fortalecimento emocional neste período de incerteza”. Diminuir a exposição às notícias e praticar atividade física, saindo de casa de vez em quando para correr, são outras sugestões da terapeuta que pontua alguns dos sinais de depressão: “estar perdido em relação ao tempo, sentir-se mais deprimido, além de não se sentir bem em casa”, e salienta que serviços de apoio psicológico continuam disponíveis online.

Rachel César reforça que aqueles que sofrerem violência, em especial às vítimas de violência doméstica, devem procurar ajuda, “os direitos das vítimas não estão de quarentena”. Às vítimas e às testemunhas de xenofobia, a recomendação é que preencham uma queixa à CICDR (Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial), disponível no site da organização. Em vez de evitar serviços de imigrantes e a convivência com pessoas de diferentes nacionalidades, a Organização Mundial de Saúde recomenda higienização frequente das mãos, com álcool em gel e água e sabão.

Texto escrito por Lívia Stamato Fernandes, estudante de letras da Universidade de Coimbra.

SOS Estudante

Neste episódio, a Dra. Rachel Cesar e a professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra, Drª Maria Jorge Ferro, conversaram sobre assuntos relacionados a temática da Saúde Mental. As convidadas desenvolveram o tema junto com os apresentadores Joabe e Giovanna, também estudantes da UC. Durante a entrevista debateram e aconselharam dentro dos temas de ansiedade, pânico e depressão principalmente no âmbito acadêmico.